Uma Inflação Dura de Matar

Algumas perguntas que começam a circular na comunidade macro global:
- Os aumentos de juros atrapalham ao invés de ajudar no combate à inflação?
- Os Estados Unidos irão entrar em dominância fiscal?
Vamos dar um zoom na economia americana. O consumidor americano continua em boa forma (ie, gastando) porque o mercado de trabalho continua forte. Ponto. O cheque que entra todo mês vai direto para a economia. Ponto.
Quando você sofre uma brutal elevação de taxas de juros, como a economia americana, você espera que alguns mecanismos de transmissão funcionem colocando um freio na atividade, no emprego e depois na inflação. Certo? Sim, no mundo pré-covid, pré farra fiscal, isso era o esperado pois um dos principais vetores de crescimento econômico era o crédito. O outro vetor esperado a ser derrubado era o mercado imobiliário, grande contribuidor com o emprego nos Estados Unidos.
O mercado americano é basicamente prefixado no financiamento imobiliário. Quem tem sua prestação fixada com juros baixos simplesmente não foi atingido. Ele simplesmente desistiu da ideia de vender sua casa e comprar outra com uma nova hipoteca (com juros mais altos). Essa falta de oferta no mercado fez com que a construção de novas casas (em especial para aluguel) disparasse, o que manteve emprego e renda suportados.

Bem, quando o FED sobe os juros ele basicamente machuca os bancos regionais e pequenos negócios. Com o excesso de poupança ainda circulando na economia, os famosos chequinhos do Covid, o fato é que a demanda por crédito despencou durante a Covid e só agora começou a dar sinais de vida. Abaixo no gráfico vemos a variação YoY% do crédito ao consumidor nos EUA.

Isso também fica claro na delinquência nos cartões de crédito, com o “auxílio governo” a turma não deu calote no cartão, o que só agora começa a voltar ao padrão pré-pandemia.

Por outro lado, a economia americana é altamente financeirizada, o valor dos ativos financeiros é quase 5 vezes o tamanho da economia real, o PIB, como podemos ver no gráfico.

Chegamos em tal ponto do “rabo” abanar o “cachorro” que há uma forte correlação da variação das receitas do governo americano e da bolsa americana.

Com isso chegamos a algumas conclusões. Primeiro e mais óbvio, o grosseiro estímulo fiscal que começou na Covid e permaneceu no governo democrata subiu a taxa de juros real neutra. O banco central tem de elevar mais os juros para obter o mesmo resultado de antes, em termos de controle da inflação. E por último, menos óbvio, o nível da bolsa (principal componente do indicador de condições financeiras) é relevante para o FED fazer o seu trabalho. Enquanto a bolsa estiver subindo e havendo geração de riqueza financeira (paper wealth), o FED estará atrás na curva. Isso explica o motivo do FED, após ter domado a crise dos bancos médios e pequenos, retomou o processo de alta de juros, após boa parte do mercado ter achado que ele tinha chegado ao topo.
E chegamos no ponto da dominância fiscal. Cada pontinho a mais de juros que temos, maior endividamento temos nos Estados Unidos, além do gasto primário, excessivamente generoso. No gráfico seguinte vemos a projeção do Escritório do Orçamento do Congresso americano (veja bem, não é um qualquer dando palpite). É um ponto que o simples aumento de juros para combater a inflação perde a eficiência e no limite até a alimenta.
A dominância fiscal é um conceito de economia que descreve um quadro desfavorável na administração econômica de um país. Ela ocorre, em termos simples, quando há desequilíbrio entre a política monetária e a política fiscal do Estado. Daí deriva seu nome: em uma situação de dominância fiscal, a política fiscal “domina” a política monetária e esta perde sua eficiência. Este desequilíbrio, por fim, torna difícil o controle da inflação e da dívida pública.
Em países emergentes, temos um claro exemplo na Argentina. Ter uma situação de dominância fiscal onde toda a dívida do país e denominada na própria moeda é algo diferente e mais perigoso, pois a tentação é o governo emitir mais e mais, que é o caminho mais fácil.
A solução para isso é um mega ajuste fiscal, extremamente recessivo. Aí entramos em uma conversa que talvez muitos não estejam preparados para ter. Vivemos em tempos em que a dor que as sociedades suportam é muito baixa, o que leva a classe política para um eterno loop de políticas populistas e gastadoras.
Essa tolerância das sociedades com maiores gastos e maior inflação é uma série que os brasileiros com mais de 50 anos já assistiram (e choraram). No começo é uma animada festa, com música e bebida. Com o tempo sabemos que isso acaba em uma tremenda ressaca.

Isso tudo torna o atual ciclo tardio da economia americana muito perigoso, um desbalanço macroeconômico que vai sendo empurrado para debaixo do tapete e níveis pouco atrativos (caros) dos ativos de risco (ações e crédito). O traiçoeiro do ciclo é que não sabemos exatamente o timing do ajuste de contas, que sim, admito que pode ir sendo adiado.
Porém a conta chega, sempre chega. A boa notícia é que instrumentos de proteção estão baratos; no caso das opções, com a volatilidade implícita abaixo da média, ou no caso dos títulos soberanos, preços razoavelmente baixos (taxas altas) que darão um suporte caso tenhamos um ajuste de contas recessivo mais selvagem.
Sobre o colunista
André Leite possui mais de 25 anos de experiência como portfolio manager e trader para diversos bancos e assets. Passou por instituições como Banco Bozano, Simonsen, Banco Modal, Banco Santander, Maxima Asset Management, J. Safra Asset Management, Kairós Capital e Torana Investimentos. Hoje é Chief of Investment Officer da TAG Investimentos. Já recebeu prêmios como “Best Hedge Fund Manager – 1998” (Revista Exame e Lipper) e “Best Fixed Income Portfolio Manager – 2002” (Revista Investidor Institucional). É formado em Engenharia Elétrica pela UFRJ e possui MBA pela University of Michigan Business School.
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