Esperando Godot

Uma análise sobre a esperada recessão americana.
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PorAndré Leite - 07/06/2023
Atualizado em 09/06/2023
5 min de leitura

Escrita por  Samuel Beckett em 1949 e levada aos palcos pela primeira vez em 1953, “Esperando Godot” é uma tragicomédia em dois atos que segue desafiando público e crítica. Na trama, duas figuras “clownescas”, Vladimir e Estragon, esperam por um sujeito que talvez se chame Godot. Sua chegada, que parece iminente, é constantemente adiada.

Qualquer semelhança com a tão esperada recessão americana não é coincidência, é proposital. 

Primeiramente vamos começar pela questão da liquidez.  Nos últimos meses, com o drama do teto da dívida americana, o que tivemos foi o Tesouro Americano usando até o último níquel de sua conta corrente, a TGA (Treasury General Account), o que naturalmente injetou liquidez no sistema, mantendo os ativos de risco suportados. O gráfico a seguir deixa isso cristalino. 

Para recompor o seu nível médio de reservas, ele teria de voltar para a casa dos USD 600/700 bilhões, somando isso com as despesas correntes do governo americano, espera-se que no verão (americano) tenhamos uma emissão de cerca de USD 1 trilhão em títulos públicos, isso é um ralo gigantesco sugando a liquidez (além do processo de quantitative tightening em curso) e naturalmente funcionando como um vento contra aos ativos de risco.  E convém lembrar que no verão, temporada de férias, a liquidez dos mercados naturalmente cai.  

Alfonso Peccatiello, editor do The Macro Compass, fez as ilustrações abaixo, que de forma bem didática mostra como a recomposição do TGA é um dreno de liquidez no sistema, pois reduz as reservas bancárias. 

Bem, você deve estar se perguntando, o que condições adversas temporárias de liquidez têm a ver com a recessão chegando ou não para a economia americana.  A economia americana tem sim setores que estão em quadro recessivo, enquanto que outros setores têm se mantido pela injeção fiscal. Com a recente injeção de liquidez pela questão do teto da dívida as condições financeiras foram afrouxadas, o que manteve as coisas em certa estabilidade.  Agora, com o caminho reverso teremos condições financeiras sendo apertadas, o que pode ser (ou não) um catalisador para a recessão finalmente chegar. 

A verdade é que este ciclo é bastante pouco usual, tanto nos US quanto no Brasil (que será tema de outro texto).  Quando olhamos para a economia de bens, já vemos os Estados Unidos em recessão, basta olhar as medidas do ISM, índice dos gerentes de compras, com anotações abaixo dos 50, já um terreno recessivo. 

Uma outra forma de se olhar isso é a capacidade utilizada na indústria química global, que como sabemos é base para tudo que é produzido.  Já está abaixo das mínimas na Covid e rumando para o que vimos na crise de 2008. 

O que tem segurado a economia americana nos últimos trimestres é a parte de serviços, não só acima dos 50, mas em tendência de alta nas últimas leituras.  Em parte, isso é o rearranjo entre bens x serviços pós pandemia e parte disso é o estímulo fiscal, que continua grande, mesmo após a grosseria das transferências na pandemia.  O governo americano está rodando com um déficit de 7% um recorde para tempos fora de recessões ou de guerra.  Só de pagamento de juros da dívida para o setor privado, o governo irá transferir mais de USD 1 trilhão em 2023, algo como 4% do PIB. Eu desconfio que o fiscal (que é diferente nesse ciclo) é o fator subestimado nesse ciclo, que tem segurado a economia, em especial na questão de mão de obra, com mercado de trabalho muito apertado. 

Além da recomposição do TGA, temos que olhar que após 31 de julho, os americanos (40 milhões deles) irão retomar o pagamento de suas dívidas estudantis (suspensas na pandemia) em USD 400 por mês.  É mais um vento contra no orçamento doméstico do americano, que voltou com tudo para os gastos no cartão de crédito para manter o seu consumo, vide abaixo.

Do ponto de vista otimista, podemos ver nos meses a frente uma recuperação cíclica pelo processo de reestocagem da economia de bens.  Vejamos o anedótico da varejista Abercrombie. As empresas recorreram às liquidações para redução de estoques, o que ajudou na inflação de bens.  Isso é consistente com leituras ruins de atividades na indústria, o varejo estava liquidando e não comprando, porém ciclicamente chega a hora de voltar a comprar.  

Há quem ache que economia é ciência exata.  Tenho dificuldade com essa leitura, afinal só nos Estados Unidos são mais de 300 milhões de consumidores tomando decisões econômicas todos os dias, comprar, poupar, investir, se endividar.  São muitos vetores na direção oposta, movimentos que as vezes só entendemos após eles ocorrerem. Quem imaginou que o setor residencial americano estaria pujante este ano, com os juros hipotecários nas máximas?  Sim, o setor está saudável e a oferta de casas é baixa, logo o micro do mercado tem prevalecido sobre o macro.  Tivemos também a quebra de alguns bancos e a atual redução na oferta de crédito. 

Eu particularmente acho que a questão do Godot não é uma questão de SE (Godot vai chegar) e sim uma questão de QUANDO e COMO (intensidade). Os próximos meses serão interessantes de observarmos, pois vamos confrontar dois eventos contracionistas, um de liquidez (TGA) e outro de consumo (retomada do pagamento das dívidas estudantis).  E isso tudo com ativos de risco americanos precificados na perfeição. 

Acho o momento bom para retirada de risco em ações e crédito (US e Europa) e alocar esse caixa em papéis curtinhos do governo americano, ainda acho que as boas oportunidades irão aparecer, é uma questão de ter calma.

Sobre o colunista

André Leite possui mais de 25 anos de experiência como portfolio manager e trader para diversos bancos e assets. Passou por instituições como Banco Bozano, Simonsen, Banco Modal, Banco Santander, Maxima Asset Management, TAG Investimentos, J. Safra Asset Management e Kairós Capital. Hoje é fundador e Chief of Investment Officer da Torana Investimentos. Já recebeu prêmios como “Best Hedge Fund Manager – 1998” (Revista Exame e Lipper) e “Best Fixed Income Portfolio Manager – 2002” (Revista Investidor Institucional).  É formado em Engenharia Elétrica pela UFRJ e possui MBA pela University of Michigan Business School. 

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